O ministro Alexandre de Moraes apresentou uma tese que pressupõe a indenização do Estado pela terra nua, além da compensação de áreas de ocupação tradicional por outras equivalentes

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma, nesta quarta-feira (20/9), o julgamento do marco temporal. A tese estabelece que as demarcação dos territórios tradicionais ficariam restringida àqueles ocupados em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Até o momento, quatro ministros votaram contra e dois a favor da tese. Entretanto, há algumas divergências entre os magistrados que se manifestaram contrários ao marco. O ministro Alexandre de Moraes seguiu um “meio-termo” e apresentou uma tese que pressupõe que proprietários rurais poderiam receber indenização do Estado pela terra nua, diante da desapropriação para demarcação, além da compensação de áreas de ocupação tradicional por outras equivalentes. Esses aspectos do voto de Moraes são vistos como “preocupantes” por especialistas ouvidos pelo Correio, pois poderiam aumentar a violência e o desamparo contra os povos originários, além de abrir margem para mais judicialização e dificultar o processo demarcatório.
“A indenização pela terra nua de forma prévia rompe com o texto constitucional e cria uma fase perigosa no processo administrativo de demarcação. Só tomaria posse a comunidade com o pagamento da indenização pela União, na inexistência de condição orçamentária, dois grupos, indígenas e não-indígenas, vão disputar o mesmo direito, e isso com certeza vai gerar conflito. Há uma enorme quantidade de comunidades indígenas ocupando áreas ainda não regularizadas, isso vai aumentar a quantidade de processos judiciais, a judicialização. O que um juiz de 1º grau vai dizer diante dessa tese da indenização prévia, é que tem que reintegrar na posse os agricultores, os fazendeiros, e tão somente depois de pagas as indenizações dará posse aos povos originários. Repito, na falta de condição orçamentária, os indígenas serão desalojados sob extrema violência, a gente sabe como agem as polícias nesses casos. Esse cenário também poderia resultar em expulsão dos indígenas para as periferias das cidades, para as margens das rodovias, criando então uma situação de crise humanitária”, explica Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e um dos advogados da comunidade Xokleng.

Após o voto de Alexandre de Moraes, a Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib) começou a dialogar com o STF, na tentativa de desidratar a proposta do ministro. “É como se declarasse inconstitucional o marco temporal, mas inviabilizasse a demarcação”, pontua Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib, sobre o posicionamento de Moraes. Segundo o especialista, a estratégia de apresentar as contradições do voto do magistrado tem dado certo, pois os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso apresentaram posicionamentos com aspectos considerados menos prejudiciais aos direitos dos povos indígenas. Na perspectiva de ambos, a indenização não deve ser pelas terras em si, mas sim pelo “ato danoso praticado pelo Estado”.

“A única forma que você teria de indenizar um agricultor que perderia a propriedade porque comprou de quem não era dono é dizer que foi um ato ilícito da União, porque pela demarcação de terra indígena não cabe indenização”, defendeu o ministro Barroso. Rafael Modesto, do Cimi, avalia que a natureza da indenização proposta por Zanin e Barroso é “constitucionalmente adequada”. “Poderia resolver a situação, porque extrai ou joga a discussão das indenizações para procedimento próprio, retira da demarcação. Essa discussão pode acontecer depois ou a margem do processo demarcatório. Não é a demarcação que cria o direito indenizatório, mas o contrário, é a titulação de terras sabidamente indígenas a terceiros pelo estado federado ou pela União que cria expectativa do direito de alguém”, pontua o advogado.

Como votaram os ministros?

O ministro Edson Fachin, relator do caso, votou contra a tese. O magistrado entendeu que a proteção constitucional das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas independe da existência de um marco temporal. Ele também pontuou que os territórios se relacionam à cultura e vida digna de um povo. “No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, destacou o ministro.

Já para o ministro Nunes Marques, que votou favorável ao marco temporal, a tese garante segurança jurídica. “Uma teoria que defenda os limites das terras a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral naturalmente abre espaço para conflitos de toda a ordem, sem que haja horizonte de pacificação”, disse.

Terceiro a votar, o ministro Alexandre de Moraes seguiu um “meio-termo” e apresentou uma tese que pressupõe que proprietários rurais poderiam receber indenização do Estado pela terra nua, diante da desapropriação para demarcação, além da compensação de áreas de ocupação tradicional por outras equivalentes. Esse aspecto do voto do magistrado foi criticado por entidades e lideranças indígenas. “O que mais nos preocupa neste voto do ministro é a indenização prévia. Isso quer dizer que as pessoas podem pagar pelo território e já adentrar nele. Isso pode gerar confusão interna entre os parentes e uma insegurança jurídica. Não se concilia direitos indígenas. Não tem meio termo para nós”, explica o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena.

O ministro André Mendonça votou a favor do marco temporal, estabelecendo a Constituição como ponto de partida para demarcação de territórios. “Não se trata de negar as atrocidades cometidas, mas antes de compreender que o olhar do passado deve ter como perspectiva a possibilidade de uma reconstrução do presente e do futuro. Entendo eu que essa solução é encontrada a partir da leitura que faço do que foi o texto e a intenção do constituinte originário, de trazer uma força estabilizadora a partir da sua promulgação”, afirmou o ministro.

Cristiano Zanin também votou contra a tese. Na leitura do voto, o ministro citou a teoria do indigenato, que reconhece que o direito dos povos indígenas às terras é “originário”. “O processo de demarcação de terras indígenas não possui natureza constitutiva, mas meramente declaratória, com a finalidade de delimitar especialmente os referidos territórios”, disse Zanin. O magistrado também seguiu parcialmente a proposta de Alexandre de Moraes sobre a indenização. Entretanto, segundo ele, a medida não deve ser pelas terras em si, mas sim pelo “ato danoso praticado pelo Estado”.

O ministro Luís Roberto Barroso seguiu um entendimento parecido. Segundo ele, não é possível estabelecer um marco temporal para a demarcação de terras. “Eu extraio da decisão de Raposa Serra do Sol a visão de que não existe um marco temporal fixo e inexorável e que a ocupação tradicional também pode ser demonstrada pela persistência na reivindicação de permanência na área, por mecanismos diversos”, explicou o ministro.

Na sessão desta quarta, prevista para começar às 14h, votam os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e, a presidente da Corte, Rosa Weber. O STF reservou 100 cadeiras para que indígenas acompanhem o julgamento do plenário. Outras 500 pessoas poderão acompanhar do lado de fora da Corte. No Supremo, a análise sobre a demarcação de terras indígenas começou em 2019, com o reconhecimento da existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. A decisão tomada no julgamento do recurso terá consequência para todos os povos indígenas do país.

Demarcação é sinônimo de vida indígena

De acordo com o advogado Rafael Modesto, a demarcação de terras tradicionais está ligado a manutenção da vida indígena, pois garantiria a segurança dos povos e a possibilidade de preservarem e reproduzirem suas culturas e crenças. “A compensação de áreas equivalentes não garante aos indígenas aquilo que está na Constituição, não respeita o que é o direito originário, relacionado a tradição. Sem a terra, o povo indígena não consegue se reproduzir física e culturalmente. Só o território de ocupação tradicional é possível garantir o essencial a vida”, frisa o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário.

Além disso, Maurício Terena, da Apib, ressalta que o reconhecimento dos territórios tradicionais também é uma medida fundamental para a preservação da natureza em meio ao agravamento da crise climática. Os povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, mantêm uma relação bem próxima com o meio ambiente e usam os recursos naturais de maneira que não causa degradação ambiental — por isso eles são comumente chamados de guardiões da floresta. “Esse é um julgamento climático também, porque as terras indígenas são essenciais para garantir um maior proteção da biodiversidade. Terras originárias são bem mais preservadas que outros territórios”, ressalta Maurício.

Fonte: CorreioBraziliense