Sob pressão política, medida será incluída na pauta do Senado logo após o carnaval. O Ministério Público Federal considera a proposta “flagrantemente inconstitucional”. Tema divide opiniões de especialistas em segurança pública ouvidos pelo Correio

O plenário do Senado aprovou, na semana passada, a urgência da tramitação do projeto de lei (PL) que trata das restrições das saídas temporárias de presos e, após o feriado do carnaval, é esperado que a medida seja incluída na pauta de votações e analisada sem passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa. O debate sobre o tema ganhou força com a morte do policial militar Roger Dias da Cunha, baleado em janeiro, em Belo Horizonte.

O Ministério Público Federal (MPF) recebeu com preocupação o andamento da matéria. O Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania do órgão emitiu um parecer em que avalia a proposta como “flagrantemente inconstitucional” e considerou ser “importante garantir a ressocialização dos encarcerados, fortalecendo os vínculos familiares e contribuindo para o processo de reintegração social da pessoal em privação de liberdade”.

A nota do colegiado criticou, ainda, o argumento que associa as saídas temporárias ao aumento da criminalidade, indicando que as alegações não levam em consideração o papel do mecanismo para a progressão de regime, ponto necessário para a reintegração dos presos à sociedade.

“Assim, em vez de buscar retrocessos, entendemos que o debate e as iniciativas em torno do sistema prisional seriam mais proveitosos se pautados pelos reais problemas que enfrentamos em todo o país, onde as prisões se encontram em um ‘estado de coisa inconstitucional’, como apontou o Supremo Tribunal Federal (STF)”, indicou o MPF.

As pessoas encarceradas elegíveis à saidinha, como é conhecido o benefício, são as que estão no regime aberto, ou seja, podem deixar o presídio para trabalhar, estudar ou cumprir atividades que contribuam com a reintegração social. O projeto que limita a saída temporária, relatado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), prevê a realização de exame criminológico para a progressão de regime e o uso de tornozeleira eletrônica em presos que estejam no regime aberto e semiaberto ou em processo de progressão para esses regimes. O exame deverá comprovar que o preso tem condições de se adaptar à nova realidade, com base na autodisciplina, baixa periculosidade e senso de responsabilidade. O texto já foi aprovado por senadores e deputados em 2022, mas mudanças feitas na Câmara devolveram a matéria para a análise da Casa Alta.

“É o primeiro projeto aprovado na volta do recesso, e isso tem uma simbologia especial porque o próprio presidente (do Senado, Rodrigo) Pacheco (PSD-MG) já falou que, nessa questão de segurança pública, esse é um projeto importante, que já foi muito debatido em audiências públicas, recebeu várias emendas, mais de sete vezes esse projeto foi e voltou para ser votado na Comissão de Segurança Pública. Então, esse é um projeto que marca, antes do carnaval, os nossos trabalhos, e mostra qual vai ser o norte, pelo menos no Senado, de dar mais urgência aos projetos de segurança pública”, comentou o relator ao Correio.

Para Flávio Bolsonaro, a matéria não tem “ideologia política, é uma pauta que as pessoas nas ruas pedem, e nós, que andamos em feiras, em comércios e temos contato com a população, ouvimos o clamor da sociedade por medidas que enfrentem a insegurança”.

O senador Jorge Seif (PL-SC) avaliou que o Legislativo tem sido “permissivo e omisso com a criminalidade, e as pessoas não querem mais isso”. “Se cometeu um crime, tem que cumprir a pena dentro da cadeia, e tem uma exceção: quer estudar, pode sair para estudar e, depois, volta para a cadeia”, disse o parlamentar.

Moralismo

Ao Correio, o especialista em segurança pública Alan Fernandes defendeu que a saída temporária é uma parte fundamental para a readaptação do detento ao mundo fora do cárcere. “É preciso fazer isso em algum momento, de alguma forma. Você tem que estipular espaços em que a pessoa saia do cárcere e volte a frequentar a vida social, por isso a saída temporária.”

O pesquisador, que integra o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vê uma “conduta moralista” na condução da pauta e afirmou que concorda que é preciso um “filtro mais cuidadoso sobre quem sai e esse filtro passa, por exemplo, pelos exames criminológicos”. Por outro lado, discorda que o aumento da criminalidade no país esteja associado à concessão das “saidinhas”.

“Os números apontam que uma pequena parcela das pessoas não retorna após essas saídas e, entre essas que não retornam, algumas cometem crimes, sem dúvida. Todavia, pessoas que também não estão no sistema penal cometem esses crimes de forma bastante presente na sociedade”, pondera Fernandes.

Segundo dados das secretarias estaduais de Segurança Pública, dos 56.924 presos que receberam o benefício em 18 estados, apenas 2.741 não retornaram à unidade prisional, o que equivale a 4,8%.

Revisão do CPP

Frederico Afonso, membro permanente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB/SP), avalia que a proposta “é válida e necessária, entretanto, o histórico do Legislativo é elaborar as leis com um atraso devido” e aponta que a morte do policial militar em Minas, “acelerou o projeto”.

“Em segundo lugar, a proporção de não retorno aos presídios é mínima, em torno de 5% em média, entretanto, esse mínimo faz um estrago, pois é, literalmente, jogar no lixo o trabalho que foi feito pela polícia (militar, civil e penal), Ministério Público e Poder Judiciário e, se já não fosse o suficiente esse prejuízo ao Erário, há o prejuízo maior à sociedade, com a prática de crimes. Há um caso concreto em Marília, interior de São Paulo, que o preso saiu, cometeu crimes e voltou no prazo determinado ao presídio”, contou o advogado.

Para Afonso, é urgente a revisão da Lei de Execução Penal e do Código de Processo Penal (CPP). “Se a pena de prisão teve alguma utilidade prática foi nos séculos passados, agora, não é porque os presídios são masmorras judiciais, como disse o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, que é preciso simplesmente abrir suas portas e liberar os presos. É preciso humanizar as penas? Sim, mas não na forma atual, muito menos na pretendida pelos legisladores e pelo atual governo federal”, opinou ele.

“Sou mais do que favorável à humanização da pena, mas, neste momento, é preciso rever a questão da ‘saidinha’, das progressões da pena, para, no mínimo, moralizar o sistema. Na prática, prende-se muito, condena-se até a penas mais altas, mas o tempo de prisão é muito pequeno. Não há ressocialização nem mantendo preso, muito menos soltando. É preciso uma revisão total no sistema e ela começa extinguindo a ‘saidinha’. Em resumo: sou contra as exceções. Pena é para ser cumprida”, finalizou ele.

Fonte: CorreioBraziliense