A campanha eleitoral fez o tema emergir nos discursos dos pré-candidatos à Presidência da República com mais intensidade

Quem tem fome, tem pressa, dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Imortalizado na canção O bêbado e o equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, na voz de Elis Regina, Betinho mobilizou o país na luta pela ética na política, pelo combate à fome e à miséria, e na defesa da vida, na década de 1990. Hoje, mais de 33 milhões de pessoas se encontram em situação de insegurança alimentar grave no Brasil, segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. A campanha eleitoral fez o tema emergir nos discursos dos pré-candidatos à Presidência da República com mais intensidade.

O atual presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL-RJ) disse, em sua passagem pelos Estados Unidos, na primeira quinzena de junho, que a economia do Brasil vai “muito bem”. No discurso que fez na Cúpula das Américas, Bolsonaro mencionou dados para sustentar que o Brasil alimenta 1 bilhão de pessoas no mundo. “Garantimos a segurança alimentar de um sexto da população mundial”, afirmou, ignorando os números internos que apontam para o avanço da fome no país.

Em outra ocasião, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente e um dos membros mais ativos na campanha da reeleição, contestou os dados, e argumentou que as famílias beneficiárias do Auxílio Brasil, com valor mensal de R$ 400 do governo federal, podem passar por dificuldades, mas não quer dizer que não tenham o que comer.

“Quem recebe 400 reais por mês de Auxílio Brasil pode ter dificuldade, mas fome não passa. O presidente Bolsonaro zerou os impostos federais sobre arroz, feijão, zerou impostos de importação sobre os derivados do petróleo que vem para abastecer as nossas redes de postos”, disse.

Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve suas diretrizes de governo divulgadas na última terça-feira, com um programa de recuperação da economia e retomada de programas sociais para combater a insegurança alimentar e a desigualdade social. O documento propõe a ampliação do programa Bolsa Família, a ser implementado de forma urgente “para garantir renda compatível com as atuais necessidades da população”, segundo o texto.

Em visita a uma feira de agricultores familiares, no último dia 16, Lula afirmou, na ocasião, que a solução para a fome no país é a agricultura familiar. “A fome é falta de vergonha na cara de um governante. Pode ficar certo que a agricultura familiar vai acabar com a fome nesse país”, disse o ex-presidente.

Nas pré-campanhas da terceira via, as propostas para o combate à insegurança alimentar estão postas à mesa. O pré-candidato Ciro Gomes (PDT) defende o Programa Renda Mínima Universal Eduardo Suplicy, que engloba pagamentos feitos pelo Auxílio Brasil, Seguro Desemprego e aposentadoria rural. “Vamos criar estoques reguladores de feijão, arroz e outros cereais e alimentos, para baixar o preço da comida. E vamos garantir gás de cozinha pela metade do preço para famílias de renda mensal de até três salários-mínimos”, informou a equipe da campanha do pedetista ao Correio.

Ciro apontou, em entrevista recente, que a grande dificuldade do país em recuperar seus níveis de segurança alimentar está na destruição da estrutura de abastecimento e preços. “No Brasil, era Conab, Cibrazem, Cobal, estruturas que fazem o óbvio: chegou a safra, o governo entra comprando para proteger o produtor com a política de preços mínimos, porque ele não tem dinheiro para pagar o banco, o agiota, não tem onde guardar, onde processar”, disse na ocasião.

Já a senadora e pré-candidata Simone Tebet (MDB-MS) assegurou, ao Correio, que o combate à fome é “prioridade máxima” do seu governo, caso eleita. “Temos de tomar medidas de impacto imediato e outras de efeito de médio e longo prazos. A primeira coisa a fazer é criar um programa de transferência de renda permanente, mas, com critérios claros de entrada e porta de saída para os beneficiários. Ou seja, não basta usar recursos públicos de forma errática e eleitoreira, sem ter como base um projeto sólido.”

Para o médio e longo prazos, Tebet aposta na consolidação da educação. “O governo federal tem de parar de jogar o problema nas costas dos estados e municípios e fingir que não tem nada a ver com o assunto”, declarou. “É inadmissível, sob todos os aspectos, morais, sociais ou humanitários, que aceitemos o fato de 5 milhões de crianças dormirem com fome todas as noites no Brasil”, declarou ela.

Causas

O economista e professor aposentado da UnB Roberto Piscitelli aponta que a fome não é desconhecida nem nova, mas agravada especialmente a partir de 2016, com a deterioração das condições econômicas e do desmantelamento dos programas sociais. “São dois aspectos que resumem o reingresso do Brasil no mapa da fome”, analisou. Para ele, a falta de planejamento acelerou o processo.

“A gente abandonou a ideia de planejamento, é tudo imediato. É o corte do tributo nos próximos meses, o subsídio no final do ano. Isso não leva a lugar nenhum. Precisamos voltar a ter um Ministério do Planejamento. É preciso eliminar esses núcleos de governo superpoderosos”, disse o acadêmico.

Já o professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Pedro Villas Boas Castelo Branco evidencia que não há falta de alimentos no Brasil. “O que existe é um grave problema distribuição, concentração de renda, o que prova que o problema é político. O Brasil é um dos maiores exportadores de proteína animal do mundo e mais da metade da população está em situação de insegurança alimentar”, avaliou.

Castelo Branco aponta que o único partido com legado em ações de combate à fome é o PT, e observa o programa apresentado recentemente para as eleições de 2022. “O programa menciona uma política nacional de alimentos com o restabelecimento de estoques capazes de atender a demanda dos segmentos em situação de insegurança alimentar. Outro ponto é a retomada do Bolsa Família, que será renovado e estendido em conformidade com as necessidades”, apontou.

Para o diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania, Rodrigo “Kiko” Afonso, é fato que a pandemia contribuiu para agravar o quadro, mas não foi determinante. “Claro que a crise econômica joga as pessoas numa condição pior economicamente, e na miséria, na pobreza, mas, quando você tem as ferramentas estabelecidas do estado para dar alguma condição de saída, ou dar algum alento para essas famílias poderem pelo menos comer, você consegue segurar essa curva. Essas políticas simplesmente foram sendo deterioradas”, explicou.

A ONG, fundada por Betinho em 1993, lançou, na última semana, a Agenda Betinho para as eleições estaduais e presidenciais em 2022. O documento conta com 92 propostas para o país, com o objetivo de gerar políticas públicas estaduais e nacionais de segurança alimentar e nutricional, munindo a classe política de propostas para possíveis soluções.

Curto prazo

Não há como reverter a situação da insegurança alimentar no Brasil sem a participação do Estado. É o que defendem, de maneira unânime, os especialistas que se dedicam à compreensão do problema. Para Kiko Afonso, o Estado deve ser o protagonista no processo. “A sociedade, as empresas e as organizações da sociedade civil têm papéis importantes, mas elas não têm a escala que o Estado tem pra conseguir resolver”, disse o diretor da ONG.

No curto prazo, ele defende que medidas emergenciais sejam tomadas. “Nenhuma solução que vá ser colocada vai resolver no curtíssimo prazo qualquer coisa estruturante. Essa construção demora”, explica.

O economista Piscitelli reforça a importância de ações emergenciais: “Os programas sociais de distribuição de renda, a curto prazo, são insubstituíveis. Programas como Auxílio Brasil e Bolsa Família são indispensáveis, e precisa haver uma perspectiva de que esses programas sejam implementados e permaneçam em vigor até que a gente consiga organizar a questão econômica no Brasil”, disse.

Fonte: CorreioBraziliense

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