Divergências entre os Poderes e os governos estaduais, porém, dificultam a elaboração de uma política unificada e eficaz

Um soldado da Polícia Militar foi morto por criminosos em Santos, na Baixada Santista, em São Paulo, na última sexta-feira. Samuel Wesley Cosmo integrava o 1º Batalhão de Polícia de Choque, que abriga os membros das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, conhecida como a Rota. Cosmo é o segundo soldado do grupo morto em seis meses, algo até então inédito na corporação. A segurança pública é um dos debates centrais deste ano no país. Com as eleições municipais se aproximando e a troca no Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), efetivada na última quinta-feira (1º/2), o combate ao crime organizado e o enfrentamento à insegurança no país são as principais preocupações do governo federal e dos estados. Entretanto, divergências entre o Legislativo, o Executivo e as ações desenvolvidas pelos governos estaduais dificultam a elaboração de uma política unificada e eficaz.

Um dia antes de o ministro Flávio Dino passar o comando do MJSP para Ricardo Lewandowski, o atual senador apresentou um balanço da segurança pública em 2023 e afirmou que o crime organizado não se combate “distribuindo tiros a esmo”, mas com estratégias de inteligência. “Combate ao crime organizado não é invadir bairros populares e fuzilar idosos, crianças e mulheres. Isso não é combate ao crime organizado, isso é alimentar o ódio e isso não é eficiente”, afirmou.

“Por isso, nós aplicamos uma política de inteligência policial, tecnologia, descapitalização e enfrentamento às facções criminosas naquilo que é vital, que é o domínio do dinheiro, a destinação dos bens e a comunicação desses escritórios do crime, que há no sistema penitenciário, alimentando o fenômeno das duas principais organizações criminosas do Brasil, que nasceram no ventre do sistema penitenciário”, declarou Dino.

Na ocasião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também defendeu o investimento em inteligência para combater o crime organizado e disse ser necessário “humanizar” os “pequenos crimes” cometidos por “pessoas humildes”. Por outro lado, no âmbito do Poder Legislativo, cresceu o desejo de promover uma mudança nas legislações penais e, com isso, elaborar leis mais rígidas para punir infratores. Além disso, a discussão sobre acabar com o benefício das “saidinhas” temporárias para presos alimentou os discursos de parlamentares nas últimas semanas.

A reforma no Código Penal, defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e as saídas temporárias estão na lista de prioridades do Congresso Nacional para este ano. A ideia, segundo o senador, é endurecer as penas para acabar com a impunidade. “Há pena, mas há também, por vezes, uma dificuldade que advém da própria lei e da aplicação dela no Poder Judiciário, que gera aquilo que é a base de uma sociedade desorganizada, que é a impunidade”, ressaltou.

De acordo com especialistas ouvidos pelo Correio, essa divergência entre o Congresso, o governo federal e os chefes de Estados dificulta um enfrentamento eficiente do crime organizado e firma mais um obstáculo no caminho de Lewandowski: a busca por diálogo com parlamentares e governadores, em sua maioria, da oposição.

“O governo Lula tem um histórico mais humanista e o Congresso é conservador, tem outra visão sobre o tema. Em algum momento vai ter que haver um entendimento, uma agenda mínima, uma pauta mínima, que seja capaz de levar a um caminho único e, a partir daí, buscar encaminhamentos para essa questão da segurança pública, que é crucial. A opinião pública está muito preocupada com esse tema e isso representa voto”, avaliou o cientista político André César, que ainda lembrou que, embora Lewandowski tenha amplo conhecimento jurídico, as questões relativas à segurança colocarão em prova a capacidade do ministro de comandar a pasta.

Operações policiais

Enquanto o governo defende uma estratégia baseada na inteligência e a “humanização” de crimes de menor potencial ofensivo, operações policiais com alto índice de letalidade são realizadas em diversos estados do país. Apesar de, na visão do ex-ministro da Justiça, o combate ao crime organizado não ser com disparo de “tiros a esmo”, a polícia brasileira mata mais de seis mil pessoas por ano — levando em consideração o período de 2018 a 2023 — segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

De acordo com dados divulgados pelo MJSP, em 2023, a letalidade policial cresceu 15% na Bahia, um estado governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e um dos principais redutos eleitorais de Lula. A polícia baiana é a que mais mata em todo país, com 1.689 pessoas mortas em ações policiais no último ano, sob o mandato de Jerônimo Rodrigues (PT).

Em segundo lugar, aparece o Rio de Janeiro, com 869 casos de violência policial em 2023. No estado, operações policiais com alto índice de letalidade são comumente denunciadas por moradores de comunidades da Zona Norte fluminense. Desde as 21h do dia 31 de dezembro de 2023, o Jacarezinho passou a ser alvo de ação da Polícia Militar, o que obrigou os quase 38 mil residentes da comunidade — de acordo com estimativa do Instituto Pereira Passos — a passar o réveillon em casa, de portas fechadas, buscando uma forma de se protegerem contra a troca de tiros.

“Isso não é normal, todos os dias nossas vidas são colocadas em risco. Não existe projeto e todos os dias temos que dormir e acordar com o som dos tiros”, relatou ao Correio um morador do Jacarezinho, que pediu para não ser identificado. Nas redes sociais, circulam vídeos de moradores da comunidade lavando calçadas ensanguentadas e comércios de portas fechadas. Foram ao menos 25 dias seguidos de operação policial na favela.

Apesar de uma queda de 2,3% no índice de letalidade policial, segundo dados do MJSP, a violência praticada por agentes de segurança, entre janeiro e junho do ano passado, aumentou em 16 estados brasileiros, o que fez a organização não governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) apontar que, em 2023, o Brasil falhou em combater esses episódio. Para a HRW, o país enfrenta um “problema crônico” de violência policial, que afeta “desproporcionalmente” pessoas negras, isso porque, com base em informações de 2022, os negros representavam 83% das vítimas.

“O que eu vejo é a continuação de uma tendência muito ruim. O número de mortes causadas pela polícia chegou a mais de 6 mil em 2018, e desde então continua nesse patamar”, enfatizou o diretor do escritório da ONG no Brasil, César Muñoz. A coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), Carolina Grillo, chama a atenção para a eficácia dessas ações policiais, já que, segundo dados obtidos por meio de pesquisas realizadas pelo Geni, “as operações policiais não contribuem para a diminuição da criminalidade, pelo contrário os anos com mais operações costumam ser os anos com mais homicídios e mais roubos”.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as incursões em comunidades são o centro da política de segurança pública empregada pelos últimos governadores. Em 2021, uma operação no Jacarezinho entrou para história como a mais letal do estado, com 28 mortos, incluindo o inspetor Leonardo de Mello Frias, de 48 anos, baleado na cabeça.

Em 2022, o governo estadual implementou o Programa Cidade Integrada, que completou um ano sem promover mudanças na violência nos locais de atuação. No Jacarezinho, o domínio do tráfico segue inalterado, na Muzema, a ocupação policial que faz parte do Programa não impediu a tomada da região pelo Comando Vermelho.

“Embora no ano passado tenha diminuído, a letalidade policial permanece em um patamar muito alto e inaceitável. Essas incursões têm efeitos letais, têm a ruptura do cotidiano dos moradores dessas áreas, que estão, muitas vezes, impedidos de ir ao trabalho, unidades básicas de saúde deixam de funcionar, creches e escolas deixam de funcionar. Além desses impactos negativos, o máximo que se consegue com essas operações é interromper o funcionamento dos pontos de vendas de drogas por algumas horas, mas, no momento em que a polícia vai embora, tudo volta a funcionar normalmente”, avaliou Grillo.

Em São Paulo o cenário não é diferente. No final do ano passado uma operação na Baixada Santista deixou dezenas de mortos. Após a morte de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), no Guaruja, a polícia realizou uma ação de caçada ao assassino do policial. A chamada Operação Escudo durou 40 dias, prendeu 958 pessoas, sendo que 382 eram procuradas pela Justiça, apreendeu 117 armas de fogo e 977 quilos de drogas e vitimou 28 pessoas.

Na última semana, uma nova fase da Operação Escudo iniciou, depois que mais um policial militar foi morto por traficantes em Santos, no litoral paulista. O governador do estado prometeu pronta resposta ao assassinato do soldado, o que marcou uma nova batalha entre criminosos, que planejam uma retaliação, e policiais.

“As operações são formas do estado se fazer presente de maneira muito visível, então é uma demonstração de força por parte do estado. O mais comum, quando temos ações policiais centradas em territórios específicos, é que esteja relacionado a algum crime cometido contra algum policial e, por isso, a corporação utiliza recursos públicos para mover operações como forma de vingança”, destacou Grillo.

“Hoje a questão da segurança está muito na mão dos estados, até por atribuição constitucional, por questão de competência constitucional. Se realmente nós quiséssemos, mas aí depende do governo, no caso do presidente Lula, seria preciso um esforço para acabar com esse cenário, uma vez que os estados demonstrem que estão diante de uma situação que já não tem como agir perante ela”, opinou Beçak.

Havendo um diálogo mais eficaz entre a União e os estados, só assim será possível implementar no Brasil uma política única de segurança pública que combine a inteligência com o enfrentamento direto aos criminosos em comunidades e pontos de tráfico de drogas. “Quando se realiza uma operação, é algo que tem um prazo específico para terminar e isso foge da ideia de uma política pública voltada para segurança. Parece que as pessoas esquecem dos conceitos básicos de ciências policiais, porque no momento em que se faz uma intervenção, não pode ser apenas das forças policiais, tem que haver também um sufocamento do crime organizado por intermédio de outras estratégias”, reforçou o especialista em Segurança Pública, Leonardo Sant’Anna.

“O nosso país, infelizmente, não investe nessas políticas públicas de segurança e continua com uma série de ações superficiais. Ainda existe muito forte o discurso de que mais armas, mais policiais, mais viaturas vão resolver o problema de segurança pública e a operação policial se concentra em armas, viaturas, e policiais, mas e o restante como, por exemplo, a movimentação das ‘cabeças’ do crime organizado?”, provocou Sant’Anna.

Os líderes de facções criminosas e a estrutura desses grupos que, atualmente, são extremamente institucionalizados, com infiltrações em diversos setores da sociedades, como na política e nas relações empresariais, são o cerne do crime organizado e não existe outra forma de combater a não ser com inteligência. “As ações da Polícia Federal de investigar as milícias, de tentar seguir o dinheiro, fazer recuperação de capital, acompanhar esquemas de lavagem e atacar as bases econômicas das milícias têm sido muito importante e, se isso for aprimorado, é possível que vejamos os efeitos práticos dessas medidas em breve”, disse Carolina Grillo.

“Atacar as bases econômicas não é só seguir o dinheiro que já está na conta, mas é, principalmente, regular os mercados locais tanto em área de tráfico quanto em área administrada pela milícia. Estamos falando da prática de extorsão dos moradores, com cobranças de taxa de proteção, taxação de todos os serviços mais essenciais, especialmente o mercado imobiliário comandado pelas milícias, que coordenam todo um processo de expansão urbana”, destacou Grillo. “Essas atividades precisam ser reguladas pelas agências regulatórias que já existem, mas essas agências precisam receber suporte operacional para que possam exercer funções de fiscalização, para impedir que esses mercados liderados pelos grupos armados se desenvolvam e fazer com que eles passem a atuar sob o controle do estado que é quem tem a prerrogativa de controlar os mercados”, completou.

Além disso, é preciso uma atenção especial aos investimentos no sistema prisional e aprimoramento do Judiciário. “As condições estabelecidas no sistema prisional continuam muito ruins, com investimentos baixíssimos. Condições indiretas, como educação, também continuam extremamente precárias. O que se observa é que o remédio chamado operação policial foi trazido para as discussões como a única forma de atuar contra o crime organizado, mas isso não existe, temos sim essa ferramenta, mas temos que reavaliar o que está sendo feito, de forma simultânea com outras ações, para que o enfrentamento seja efetivo”, salientou Sant’Anna.

A descapitalização também é uma estratégia elogiada pelos especialistas, mas não de forma isolada. O ideal é que o ataque ao sistema financeiro das organizações criminosas seja realizado em conjunto com diversas outras táticas que requerem a atuação dos Três Poderes da República e dos governos estaduais. “A tendência é que, se essas ações não acontecerem de forma multidisciplinar, de forma concatenada entre a justiça, o sistema prisional, a inteligência policial, o desmonte financeiro, o Brasil correr o risco de ter um cenário parecido com o que ocorre no México, na Colômbia, no Equador, e, assim, vai exigir medidas mais drásticas do que simplesmente uma operação policial”, estimou o especialista em segurança pública.

Reforma penal

Embora a sensação de impunidade comentada por Pacheco seja alvo de críticas por parte da população, que pede por um endurecimento das penas, esse pode ser um método que não reflita em efeitos significativos quando o assunto é combate ao crime organizado. “É utópico acreditar em uma solução simples para um problema tão complexo como o aumento da criminalidade no Brasil, e o discurso sobre a reformulação do Código Penal para o endurecimento das penas revela-se vazio e gerador de uma falsa sensação de segurança à sociedade”, alegou o Renan Scapinele Deróbio, professor de Direito Penal e Processual Penal.

Para o criminalista, o endurecimento da legislação promove uma sobrecarga no sistema prisional, que não consegue ressocializar os presos e acaba se convertendo em locais de fortalecimento das facções criminosas. “Se sanções mais rígidas fossem resolver nosso problema, os índices certamente teriam diminuído após a promulgação das Leis de Crimes Hediondos e de Drogas, mas o que se viu foi tão somente o aumento do encarceramento. O Brasil ocupa atualmente o 3º lugar no ranking de países que mais encarceram”, destacou.

“Não é novidade que o nosso sistema carcerário é incapaz de ressocializar e se apresenta como um antro fértil para que organizações criminosas arrebanhem mais membros e façam cada vez mais frente às políticas criminais deficientes. Antes de o Estado punir severamente, tem a responsabilidade de propor outras medidas para contornar esse impasse, e sabemos quais são: educação, alimentação, saúde, trabalho, entre outros. Infelizmente, isso implica em custos elevados e não gera resultados imediatos àqueles que visam o próximo mandato, então, é preferível oferecer uma segurança rápida e superficial”, criticou Deróbio.

Estudos científicos comprovam que leis mais rígidas não são ineficazes. Nesse caso, a estratégia mais eficaz seria buscar formas de garantir que a legislação atual seja cumprida em sua integridade, promovendo uma certeza de punição. “O aumento de pena é sempre um método falho, já demonstrado cientificamente por meio de pesquisas da área de criminologia. Na verdade o endurecimento penal não tem efeito dissuasivo no comportamento criminoso, na verdade, a certeza de punição, mesmo que com penas mais brandas, tem um efeito dissuasivo muito maior em relação à prática de crimes. Então não adianta aumentar as penas quando a gente está tratando de pessoas que não estão contando com a certeza de punição”, concluiu Grillo.

Fonte: CorreioBraziliense