Chanceler diz que viagem de presidente Lula à China marca retomada de pontes destruídas e “virada de página triste” da diplomacia
Principal parceiro econômico do Brasil, a China é o destino mais importante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos primeiros 100 dias de governo. Depois do adiamento da visita de Estado para o país asiático que seria realizada em março, o presidente brasileiro embarca, amanhã, em Brasília, acompanhado de ministros, políticos e empresários. Na agenda, carrega temas complexos de um mundo que não é mais o mesmo daquele que viveu nos dois primeiros mandatos à frente do Palácio do Planalto.
Lula pretende consolidar o papel da liderança do Brasil na América Latina e entre os países emergentes, e voltar a ter voz entre os grandes do planeta. “Reconstruir pontes” no tabuleiro da geopolítica mundial foi a principal missão que Lula deu ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, logo que o convidou para o cargo.
A pauta da visita de Estado à China é extensa e não se limita às questões do comércio bilateral e da atração de investimentos, prioritárias para o país neste momento de incertezas globais. O papel dos Brics — acrônimo do bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, a retomada do multilateralismo e, obviamente, as consequências da guerra na Ucrânia, estão entre os temas que serão tratados diretamente com o presidente chinês, Xi Jinping.
É sobre esses e outros assuntos relacionados à viagem de Lula à China que o chefe do Itamaraty revela, em entrevista ao Correio. “Essa viagem, justamente, fecha o primeiro ciclo dessa reconstrução, de virar a página do isolamento que tanto prejuízo trouxe ao país nos últimos anos”, afirma Vieira.
O chanceler também destaca que o isolamento internacional do Brasil nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — uma política que chamou de “anti diplomacia”, caracterizada por “agressões infantis a países amigos por parte de ministros que se divertiam nas redes sociais às custas do contribuinte”. Confira a seguir:
A viagem do presidente Lula à China é estratégica para reposicionar o país na agenda das relações bilaterais e multilaterais. Quais são as prioridades da agenda diplomática e comercial do presidente com o líder Xi Jinping?
No meu primeiro despacho com o presidente Lula, logo que cheguei da Croácia como ministro indicado, em dezembro de 2022, a primeira instrução que recebi dele foi clara: era preciso reconstruir pontes com o mundo, começando pela nossa vizinhança, pela América Latina e pelos atuais grandes pólos de poder mundial — Estados Unidos, União Europeia e China. E foi a isso que nos dedicamos, no Itamaraty e na presidência, nesses pouco mais de três meses de gestão. O presidente foi a Buenos Aires, onde participou da cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), e a Montevidéu. Encontrou-se também com o presidente do Paraguai (Mário Abdo Benítez) na fronteira, foi a Washington, conversou com os principais líderes europeus e, agora, viaja a Pequim, onde já esteve em visitas de Estado em 2004 e 2009, e também na abertura dos Jogos Olímpicos de 2008. Essa viagem, justamente, fecha o primeiro ciclo dessa reconstrução, de virar a página do isolamento que tanto prejuízo trouxe ao país nos últimos anos. Houve o adiamento (por causa da pneumonia a que o presidente foi acometido dias antes da data de embarque original), mas a rápida marcação de novas datas, em menos de duas semanas, é mais uma demonstração da prioridade que ambos os líderes dedicam à relação.
As equipes estão trabalhando, e vão continuar trabalhando até a véspera, na negociação dos acordos e dos anúncios que servirão como roteiro para o relançamento da relação bilateral com base em metas e ganhos concretos.
O patrimônio de avanços dos últimos anos é notável. O mercado chinês já absorve cerca de 1/3 das exportações do agronegócio brasileiro. Desde 2009, quando a China passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil, o volume de comércio quadruplicou. Nossas exportações para a China, em 2022, foram maiores do que as exportações somadas para Estados Unidos e União Europeia. Ainda há espaço a ser ocupado por outros setores, inclusive para marcas brasileiras e produtos de maior valor agregado.
Como retomar o pragmatismo da política externa brasileira em um cenário que se mostra multipolar? Para que lado vai o pêndulo das relações externas em relação à China e aos EUA?
Não se entende a imperícia que orientou a anti diplomacia do governo anterior na relação com Pequim, e com tantos outros parceiros importantes. Por isso, não é um exagero dizer que tantas pontes estavam destruídas. A anti diplomacia pôs em risco negócios, empregos e renda de brasileiras e brasileiros por sectarismo ideológico e teorias da conspiração absurdas, sem falar nas agressões infantis a países amigos por parte de ministros que se divertiam nas redes sociais às custas do contribuinte. Esse período não tem nada a ver com a tradição de profissionalismo da política externa brasileira. Ao dizer que o Brasil voltou ao mundo, o presidente Lula pôs seu peso político e sua credibilidade internacional a serviço de uma mensagem clara: essa página triste da história da diplomacia brasileira foi virada.
O que volta a orientar nossas escolhas em matéria de política externa é o interesse nacional. Simples assim. E o interesse nacional determina que dialoguemos com todos, sem alinhamentos automáticos que não levam a nada. Buscamos, em cada relação bilateral, com qualquer de nossos parceiros, a promoção do desenvolvimento do Brasil e, no caso dos nossos vizinhos latino-americanos, também o mandamento constitucional da integração regional.
No que diz respeito aos Estados Unidos e à China, mantemos excelente relação com ambos, e cuidaremos dessas relações com a prioridade que elas merecem, sempre em sintonia com o interesse nacional e em diálogo com a sociedade brasileira.
Brasil e China integram o Brics, assim como a Rússia. Qual o papel que o Brasil pode exercer em relação às negociações de paz na Europa e como esse tema será tratado no encontro?
Estamos prontos a falar de paz com quem queira discutir soluções construtivas para o conflito, e isso tem acontecido desde o início do mandato do Presidente Lula, nas dezenas de contatos que tivemos com líderes mundiais. Mas não chegamos com uma proposta pronta e acabada, pelo simples fato de que, como um governo que acabava de assumir, era lógico e prudente ouvir as partes e os principais atores internacionais para explorar possíveis caminhos para uma cessação de hostilidades e, posteriormente, para a construção do entendimento. Foi isso o que fizemos nesses três meses, ouvir muito, abrir canais, e contamos com ótima receptividade por parte de todos, sem exceção. O Brasil tem um papel a cumprir nesse debate, está disposto a contribuir, e conta com o interesse da comunidade internacional na nossa participação.
Qual o papel que o Brasil espera do Brics em relação às principais questões da agenda internacional, especialmente à guerra na Ucrânia, ao aquecimento global e ao acesso a mercados?
Primeiro, é preciso reconhecer uma obviedade poderosa: os participantes dos Brics são países que reúnem, em termos de população, a metade da humanidade. Têm, portanto, muito a dizer e também muito a compartilhar, e isso tem sido feito desde a formalização do grupo. A cúpula dos Brics será em agosto, na África do Sul, e, até lá, teremos tempo para acompanhar a situação do conflito na Ucrânia e possíveis vias para o diálogo. O aquecimento global é outro desafio existencial para o qual temos que encontrar respostas, com rapidez, e a relação bilateral com a China traz boas lições em matéria de cooperação no campo das energias renováveis e na abertura de novas frentes tecnológicas, como a dos carros elétricos, que envolve uma participação da iniciativa privada.
Acredito que a questão de acesso a mercados diz respeito a outros âmbitos e espaços de debate no mundo, mas os Brics podem e devem reiterar uma preocupação, que é a do Brasil, sobre a preocupante paralisia de organismos como a Organização Mundial do Comércio (OMC), e sobre a necessidade de reforma da OMC e da própria Organização das Nações Unidas (ONU).
Qual a expectativa brasileira em relação ao papel do NDB, o banco dos Brics, para o qual o governo Lula indicou a ex-presidente Dilma Rousseff ao comando da instituição?
A nossa expectativa desde o início da gestão é a de uma ampliação dos projetos de interesse do Brasil na carteira do banco, mas, na minha visão, a presença da presidenta Dilma Rousseff à frente do NDB, a partir de agora, tem um significado muito mais amplo. A experiência da presidenta Dilma vai ser fundamental para o banco como um todo, que tem muito a ganhar com ela à frente da instituição. A ida do presidente Lula a Xangai para uma visita ao chamado banco dos Brics, no primeiro dia da viagem, vai simbolizar o interesse prioritário do governo brasileiro no NDB.
A China, além de ser o principal comprador de commodities brasileiras, está ampliando seus investimentos no Brasil em áreas como energia, tecnologia e indústria automobilística. Que outros setores estarão no cardápio dos encontros de negócios?
Entre os acordos que estão em negociação, e esse é um trabalho que se estende até a véspera da visita, costumo citar o do desenvolvimento da sexta geração do satélite sino-brasileiro CBERS, que é resultado de uma cooperação no campo tecnológico iniciada ainda na década de 1980. Além disso, é notável o aprofundamento dos laços econômicos entre os dois países no campo das energias renováveis, com forte desenvolvimento em novas áreas, como a solar e a eólica. O tamanho e o alto nível de representação da comitiva empresarial que foi à China em março falam por si. Tivemos um seminário empresarial com mais de 500 participantes, de ambos os países, e isso indica que novas frentes serão abertas. E, além da perspectiva de abertura de novas frentes de negócios, a ida de uma delegação empresarial e política expressiva ofereceu também a oportunidade de um contato direto com a realidade da China, cuja evolução acelerada nas últimas décadas é motivo de interesse de todo o mundo.
Uma das prioridades do presidente Lula é reforçar o papel do Brasil nos fóruns internacionais e retomar a posição histórica do país em favor do multilateralismo. Que tipo de apoio espera receber do governo chinês?
Temos um grande desafio pela frente em matéria de multilateralismo, tanto no plano econômico-comercial quanto no político. As instituições multilaterais precisam ser reformadas com urgência, o mundo não pode dar-se ao luxo de continuar com instituições cruciais, como a ONU e a OMC, paralisadas ou com espaços de tomada de decisão herdados da II Guerra Mundial. É urgente retomar esse debate, e já estamos empenhados nisso.
O Brasil pleiteia um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. O tema será tratado pelos dois líderes?
A reforma das instituições multilaterais, para países como o Brasil e a China, está entre os temas prioritários na agenda global, e faz parte da pauta do encontro. O Brasil tem um compromisso histórico com o multilateralismo, que atravessa um período de dificuldades e precisa ter suas instituições reformadas. Não se trata apenas da ONU, a paralisia da OMC, nos últimos anos, é uma questão urgente também, é o órgão que regula o comércio internacional e que dispôs, durante anos — mas não dispõe atualmente —, dos meios para dirimir controvérsias comerciais entre seus membros. Para países como o Brasil, a OMC oferecia a possibilidade de defesa para nossos agentes econômicos diante da concorrência fora das regras do jogo acordadas multilateralmente ou de medidas unilaterais ilegais, que restringem o acesso de nossos produtos a mercados importantes. É urgente e prioritário que a OMC tenha de volta as condições para operar plenamente.
Sobre redes sociais, a polêmica que envolve o aplicativo chinês TikTok nos EUA e na União Europeia entrará na agenda? Em que contexto?
As novas mídias, como a própria realidade brasileira demonstrou, têm impacto direto na realidade cotidiana de cada um, e influem no debate público, pelo poder de difusão que têm, tanto de informações fidedignas quanto de mentiras e das mais diversas formas de manipulação. E é natural que esteja entre as prioridades para ambos os países, até mesmo porque essas mídias têm uma dimensão econômica também muito relevante. O presidente Lula tem se manifestado claramente no sentido de que é preciso discutir essa questão no plano internacional. A regulação é um dado da realidade na vida em sociedade, e passou da hora de que se discuta algum nível de regulação para as chamadas novas mídias, uma atividade que se tornou um negócio bilionário no mundo, e cuja aplicação na propagação do ódio e da violência precisa ser contida.
O que o Itamaraty espera da visita de Lula aos Emirados Árabes Unidos? Quais são as pautas prioritárias e porque essa viagem foi agendada na sequência?
O presidente Lula recebeu o convite e decidiu aceitá-lo diante do grande potencial de crescimento das relações com os Emirados Árabes Unidos e com os demais países do Golfo (Pérsico), que vamos desenvolver muito nos próximos anos, com base em projetos de investimentos e na expansão dos laços comerciais. Por isso, decidiu também remarcar essa visita no mais breve prazo possível, já para o dia 15, após a nova data da visita a Pequim. Países relevantes do mundo têm dedicado especial atenção a essa região, e faremos o mesmo.