Os Ministérios Públicos estaduais, responsáveis pela fiscalização dos poderes públicos, além de defenderem o cumprimento das leis, apresentam ausência de padrões e descompromisso com a divulgação de dados para a sociedade sobre a remuneração de seus membros, de acordo com o estudo “Índice de transparência da remuneração de MPs”, da organização Transparência Brasil, que acaba de ser divulgado.
Assim, fica prejudicada a fiscalização da remuneração de promotores e procuradores dos Ministérios Públicos brasileiros. O estudo aponta ainda que a transparência dos MPs, quando o assunto é pagamento de salários e demais verbas indenizatórias, é pior do que a do Judiciário. São adotados critérios diferentes de organização e veiculação de dados e informações, dificultando o acesso ao portal de cada MP nos estados.
A falta de transparência e confusão na apresentação dos dados sobre remunerações é tanta que, segundo a Transparência Brasil, 14 dos 27 Ministérios Públicos estaduais não puderam ser avaliados. Foi constatada “imensa variabilidade nos formatos de disponibilização dos dados de remuneração de seus membros entre janeiro de 2018 e dezembro de 2021”. São órgãos de todo o território nacional, inclusive de grandes centros metropolitanos.
Os Ministérios Públicos cujos dados se mostraram ilegíveis são os de: Acre, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
Para a Transparência Brasil, “a falta de condições de padronização e/ou abertura de dados impõe dificuldades intransponíveis para a coleta mensal automatizada dos contracheques de cada órgão, prejudicando a transparência e o accountability sobre os salários e demais verbas recebidas por seus membros”.
A opacidade dos dados, ou mesmo a falta de divulgação, é vista como retrocesso e falta de disposição em cumprir o determinado na Lei de Acesso à Informação (LAI), além de contrariar resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que determina transparência e divulgação de dados.
No outro lado da tabela do ranking sobre transparência, entre os 13 MPs que puderam ser avaliados, ou seja, que apresentaram condições mínimas de acesso automatizado às informações, os de Paraná, Amapá e Amazonas obtiveram as piores pontuações.
O do Amazonas não disponibilizou contracheques de todos os meses dos anos de 2018 e 2019. Isso constitui uma grande lacuna na transparência de remunerações.
As dificuldades encontradas na coleta de dados de remuneração dos 14 MPs excluídos do Índice de Transparência devem-se principalmente às alterações constantes no formato das planilhas e à falta de padronização mínima nas URLs dos arquivos para download das informações.
Outros motivos para excluir MPs da análise foram ausência de dados de verba indenizatória, uso de captcha para acesso aos dados e planilhas inconsistentes.
Por último, a necessidade de simulação de cliques, embora não determine por si a exclusão de um MP do processo de coleta de informações, representa um grande entrave para a abertura de dados.
Barreira para comparação
As constantes alterações no formato e na estrutura de planilhas para organizar e dispor os dados mensalmente, além de planilhas inconsistentes, erguem outra barreira na comparação dos dados. De acordo com os analistas de dados, verificaram-se transformações frequentes na ordem das colunas, o que inviabiliza a aplicação do mesmo código para a leitura dos dados de cada mês. O que torna necessário retificar e padronizar as informações.
Houve ação por parte do CNMP para tentar reunir e consolidar os dados de remunerações de todos os MPs brasileiros, de acordo com o disposto nas Resoluções nº 86 e nº 89, ambas de 2012.
Porém, segundo o estudo da Transparência Brasil, a iniciativa de um Portal de Transparência dos Ministérios Públicos se efetivou apenas por pouco mais de um ano: o portal contava somente com informações de janeiro de 2018 a fevereiro de 2019 das remunerações dos MPs estaduais. Ainda assim, em abril de 2022, até mesmo essas informações foram retiradas do portal.
O cumprimento dos requisitos básicos para a estrutura e acessibilidade dos portais de cada MP, determinados pela Resolução nº 89/2012 do CNMP, deveria ser suficiente para contornar a lacuna. Em especial, o inciso III do artigo 8º, que requer que os portais “possibilitem o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina”. Ele não é satisfeito pelos MPs excluídos do índice, nem por alguns dos MPs que puderam ser avaliados.
Disparidades
A coordenação do estudo da Transparência Brasil mostra disparidades entre os modelos adotados para divulgação das remunerações de promotores e procuradores. “O modelo adotado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reúne dados de remunerações de todos tribunais do país em um portal, ainda que apresente falhas, tem um papel fundamental para dar transparência às remunerações da elite do Judiciário, uma vez que padroniza e consolida dados para o controle social. Já promotores e procuradores, que possuem equiparação legal de salários e privilégios de magistrados, têm um Conselho Nacional que não tem se esforçado da mesma forma, já que desde 2019 não publica dados unificados de remuneração”.
Dificuldade no controle social
Todos os obstáculos encontrados pelos pesquisadores adicionam um nível de dificuldade para o controle social, pois recai sobre o cidadão ou fiscal externo a tarefa de padronizar os dados de um mesmo órgão, que por vezes sofrem sucessivas alterações em curtos períodos de tempo.
Tal tipo de alteração deveria ser raro e acompanhado de justificativas sobre sua pertinência — já que deveria servir para facilitar, e não dificultar o consumo desses dados, alerta a coordenação do estudo.
Ministérios Públicos de oito estados apresentaram o problema de alterações da apresentação dos dados de maneira recorrente, realizando três ou mais mudanças na formatação em 48 meses: Acre, Espírito Santo, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo.
O estudo identificou que as alterações foram constatadas de forma mais consistente e recorrente nos MP-RJ, MP-RS e MP-SP. O primeiro alterou a formatação das colunas nas planilhas oito vezes somente no ano de 2020. O MP-RS, além de apresentar valores extras além das colunas listadas para alguns funcionários, sem nenhuma especificação do que se tratavam, publicou planilhas inconsistentes com valores em colunas trocadas — por exemplo, dados que deveriam estar na coluna “Remuneração Base” estavam na coluna “Gratificação Natalina”. Por fim, o MP-SP se destaca por alterar tanto a ordem quanto a quantidade de colunas de suas planilhas constantemente, chegando a mudar as planilhas de contracheques quatro vezes e as de verbas indenizatórias seis vezes em 48 meses.
Ausência de verbas indenizatórias
Dois dos 14 MPs — Pará e Maranhão — que ficaram fora do cálculo do índice deixaram de prestar contas das verbas indenizatórias.
A exclusão dos MPs é dada nos casos em que faltam conjuntos de dados inteiros de verbas indenizatórias. Mas nos casos em que faltam meses de prestações de contas, o MP não é excluído e a falta de dados é avaliada na composição do Índice de Transparência.
No entanto, a ausência completa dos dados de verbas indenizatórias representa um grave impedimento ao controle social. É justamente por meio das verbas indenizatórias que os supersalários de promotores e procuradores burlam o teto constitucional.
A não publicação das planilhas detalhadas de verba indenizatória torna impossível o objetivo do projeto de coleta e análise de dados da Justiça brasileira de controlar os privilégios da elite do funcionalismo do sistema de Justiça.
O MP-PA não publicou nenhuma planilha de verbas indenizatórias durante todo o período analisado (2018-2021). O MP-MA disponibilizou, para o mesmo período, planilhas de verbas indenizatórias completamente vazias.
O cidadão comum, e mesmo pesquisadores profissionais e universitários, ou ligados a entidades de fiscalização dos poderes públicos, enfrenta muitas dificuldades em vários portais dos Ministérios Públicos nos estados para acessar informações sobre pagamento de salários e indenizações.
Segundo os pesquisadores da Transparência Brasil, o ideal seria que os portais respeitassem os princípios de dados abertos e apresentassem uma estrutura que facilitasse a coleta automatizada das informações: dados desagregados, padronizados, em formatos abertos e não proprietários, indexados com URLs e nomes que obedeçam um padrão lógico e semântico, contendo metadados e sem requerimentos de login ou verificações de captcha.
Mas a situação é exatamente ao contrário. Os portais que não satisfazem esses requisitos determinam a simulação de cliques para se ter acesso à coleta de dados. “Trata-se de um código que simula a ação de um usuário manuseando o cursor: leva em consideração as características da estrutura da página e é capaz de identificar os botões que precisam ser clicados para obter os dados buscados”, observa o relatório final do estudo.
Considerando o conjunto dos 27 Ministérios Públicos brasileiros, cada um dotado de um portal de transparência com estrutura organizacional própria, o desenvolvimento de códigos diferentes para coletar dados de cada um deles, e, assim, monitorar as remunerações de todos os MPs estaduais, é extremamente custoso.
O panorama é diferente do observado na análise sobre os Tribunais de Justiça, em que também houve demanda por simulador de cliques para a coleta automatizada, mas um único código era suficiente para capturar todos os contracheques disponíveis de uma só vez, pois estão centralizados em um único portal.
Dos 14 casos que ficaram de fora do índice de 2022, quatro apresentam portais em que a simulação de cliques é necessária, além de apresentarem problemas impeditivos para coleta automatizada, como URLs ou planilhas despadronizadas, além de ausência de dados: MP-RJ, MP-PA, MP-MA e MP-RR.
O caso mais notório deste problema é o do MP-RR, que, além de necessitar de simulação de cliques, também possui o entrave adicional de verificação de captcha. Nesse caso, a estrutura da página dificulta ainda mais o acesso automatizado, uma vez que essa verificação é realizada para garantir que o usuário acessando a página seja humano. Em outras palavras, o objetivo do captcha é justamente impedir o propósito do projeto de realizar coletas automatizadas por meio de robôs, aponta a Transparência Brasil.
Papel do CNMP
A necessidade da criação de um portal de transparência dos Ministérios Públicos, nos moldes do painel atual do CNJ, não é nova e está prevista em resoluções do CNMP. A Resolução nº 86 de 2012 determina efetivamente sua criação, bem como as informações mínimas que o portal deve conter e disponibilizar em transparência ativa.
Com base no que foi apresentado nesse relatório, a Transparência Brasil recomenda:
1) Que o CNMP faça valer as determinações dispostas em suas Resoluções nº 86/2012 e nº 89/2012 e cumpra sua função legal de reunir e publicar informações de remuneração padronizadas e atualizadas;
2) Que o CNMP atualize seu Manual do Portal da Transparência dos Ministérios Públicos, de forma a instruir claramente os MPs sobre como garantir a estruturação de dados e o acesso automatizado aos portais, conforme preveem a Resolução nº 89/2012 e a Lei nº 12.527/2011;
3) Que os 14 MPs excluídos desse índice passem a apresentar condições mínimas de transparência e dados abertos, em cumprimento à Lei nº 12.527/2011 e à Resolução nº 89/2012 do CNMP;
4) Que todos os MPs avaliados busquem a adoção dos princípios de dados abertos em seus portais de transparência, especialmente no que diz respeito à estruturação de dados e à legibillidade por máquina;
5) Que os MPs dos seguintes estados promovam os ajustes indicados, de forma a não mais comprometer a transparência pública e o direito à informação dos cidadãos brasileiros.