Enquanto o governo defende a exploração de potássio em terras indígenas, especialistas argumentam que o processo é demorado
Sob a justificativa de um possível esgotamento no estoque de fertilizantes para a agricultura brasileira, o governo federal trabalha para acelerar a aprovação do Projeto de Lei (PL) 191/20, que regulamenta a exploração de recursos minerais em terras indígenas. O texto tramita em caráter de urgência na Câmara dos Deputados e poderá ter seu desfecho até meados de abril, após a análise de um grupo de trabalho, ainda a ser definido.
O agro brasileiro tem uma dependência de 85% de adubos, que são importados. O principal argumento do presidente Jair Bolsonaro (PL) é de que, com o avanço da proposta, o Brasil poderia ser autossuficiente dos insumos que vêm de países europeus. A invasão da Rússia à Ucrânia expôs essa vulnerabilidade brasileira. O governo passou, então, a prever que os estoques de fertilizantes só durariam até outubro. Com isso, a proposta seria uma das respostas do governo à crise.
Contudo, a exploração de potássio não é um processo rápido. Segundo o ambientalista Charles Dayler, começar a produzir fertilizantes no país é um caminho lento. “Vai depender do tipo de material que vai minerar. A liberação para mineração não é como com outras licenças que têm que ser obtidas. Por exemplo, precisa da licença ambiental da Agência Nacional de Mineração (ANM), tem a questão do estado, se vai autorizar. Então, é um processo que ainda vai demorar muito tempo e não dá para fazer em sete meses”, pontua.
Para Dayler, o Brasil não pode ficar dependente dessa lei. “Estamos falando de quase 80% dos fertilizantes que usamos, que vêm de fora do país. Temos que alavancar a produção mineral no Brasil, porém, isso tem que ser feito de uma maneira bem trabalhada, porque a pressa pode levar à judicialização de vários outros questionamentos no futuro. Aí, em vez de acelerar o processo, pode retardar”, argumenta.
Nessa linha, Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, afirma que o argumento do governo é “uma narrativa vergonhosamente falsa”. Segundo a especialista, o potássio não existe apenas nos territórios indígenas e a grande maioria das áreas com potencial de exploração está em outros lugares. Mesmo assim, para começar a extração, é necessário alguns ritos, como a análise dos órgãos competentes das áreas de mineração e meio ambiente, a capacidade de implementação do empreendimento, respeitando os dispositivos legais, entre outros.
“Além disso, nem sempre a exploração poderá ser autorizada. Registre-se que a maior parte das licenças ambientais relativas à mineração é tarefa dos órgãos estaduais do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente)”, aponta Suely. “Em terras indígenas, se houvesse lei autorizando, o que não existe, a licença ambiental caberia ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Mas é importante enfatizar que seguir regras ambientais passa longe das preocupações do atual governo”. Para ela, essa proposta atingirá direitos fundamentais dos povos indígenas assegurados pela Constituição e gerará um verdadeiro desastre socioambiental. “A lista de efeitos graves, irreversíveis, é bem grande”, frisa.
Dados da plataforma Amazônia Minada, que monitora requerimentos de mineração em terras indígenas e unidades de conservação integral da Amazônia, registraram, até ontem, 3.562 pedidos ilegais. Segundo o levantamento, a área requerida é equivalente ao tamanho da Inglaterra. E as terras dos Yanomamis são as mais cobiçadas pelos garimpeiros. Só em 2022, o sistema detectou 21 requerimentos minerários em terras indígenas e 14 em Unidades de Conservação de proteção integral na Amazônia. A área equivale a 206.115 campos de futebol. Sobre minério ilegal, existem 1.233 pedidos para exploração em 49 UCs de proteção integral da Amazônia. A lei 9.985/00 proíbe qualquer tipo de atividade mineradora nessas áreas. Os dados são extraídos da ANM e, via de regra, o órgão não autoriza formalmente esses pedidos, mas eles ficam registrados no banco de dados.
Novos caminhos
Dalce Ricas, superintendente da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), afirma que se trata de uma segunda invasão às terras indígenas. “O mundo está indignado com a invasão da Rússia na Ucrânia, com toda razão, e estamos aqui assistindo a mais um forte capítulo de invasão dos territórios indígenas”, observa.
De acordo com ela, haverá danos ambientais que serão causados à floresta, à fauna, à flora e aos rios. “Nós nunca aproveitamos a oportunidade para repensar as coisas, porque essa seria uma oportunidade de pensar na dependência de potássio, até nesse modelo de agricultura que nós adotamos, que é à base de fertilizantes. Será que não teriam outros caminhos?”, questionou.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o potássio na Amazônia se encontra em condições de difícil extração. “Mesmo que aprovada (a proposta), a viabilidade desse empreendimento teria altos custos logísticos e operacionais e seu custo poderia ser ainda maior do que sua importação. Se a proposta fosse aprovada agora, levaria anos até a exploração das jazidas. Além de tudo, poderia aumentar mais ainda os conflitos territoriais”, sustenta a entidade.
Fonte: CorreioBraziliense